A invisibilidade da carne negra

Moisés. Moisés era o nome do rapaz. Ele precisou ser espancado até a morte para que o mundo soubesse que ele trabalhava ali, em um quiosque em plena praia da Barra da Tijuca, posto 8, lugar frequentado por bacana, dez reais um coco verde. Ele estava ali. Invisível. Trabalhava em condições análogas a escravo. Talvez não fosse sequer cumprimentado pelos frequentadores daquele quiosque.

Fiscalização, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Turismo, todos silentes. Fingem não saber aquilo que está evidente. Será o único quiosque a ofertar “trabalho” nessas condições? Certamente não. Mas ninguém fiscaliza.

Janaína. Janaína é o nome da moça que estava no complexo penitenciário de Gericinó, mais conhecido como Bangú. Janaína é negra e segurava em seus braços uma criança negra. Ela amamentava essa criança e chorava sem parar. Estava desacompanhada de advogado. Em sua frente, a unidade de Bangú 8, local onde ficam os políticos e aqueles que cometem crimes de colarinho branco. Gente com grana para pagar advogado. Uma procissão de advogados para entrar. Janaína estava só, na outra unidade, Bangú 6. Local onde ficam os presos menos favorecidos.

– Por que vc está chorando? – perguntei.

– Hoje é dia de visita. Tinha apenas cento e cinquenta reais. Gastei com transporte e comida. Trouxe essa criança para ver o pai. O documento está suado. Disseram que não dava para ler. Mas se olhar direitinho, dá, sim, Doutora!, disse ela.

– Vamos lá tentar resolver?, propus.

Resumindo, com um pouco de boa vontade e conhecimento, Janaína e seu filho entraram para ver seu marido e pai de seu filho. Janaína era só um pedaço de carne negra invisível, ninguém se importava, ninguém a via!

Sinal fechado. Rapaz jovem bate no vidro. Abre, não abre. O medo. O preconceito racial que achamos não ter, mas ele está lá. O rapaz era negro. Coração acelerou. Vou abrir. Declamação de um poema e, por fim, um “obrigado por me notar, a maior parte do tempo sou invisível”. Um mundo em câmera lenta por alguns segundos que pareciam a eternidade. Buzinas. Pressa. Todos têm pressa. Inclusive eu, já atrasada em um trânsito sem fim. Não sei o nome do rapaz. Mas o poema ficou na minha cabeça.

Manuela é uma advogada extraordinária. Ela usa dreads (aqueles cabelos afro com tranças maravilhosos). Nos encontramos no corredor de um dos Fóruns da cidade. Ela havia chegado antes de mim. Embora estivesse com indumentária de advogada, não foi tratada como tal. Fui chamada antes pelo cartório. Ela tinha chegado primeiro! Quando me chamaram, informei: é a vez da doutora!

Um sorriso amarelo. Um “desculpe, não sabia que era advogada.” Por que, hein? Qual a cara de uma advogada? Há uma cara? A invisibilidade da carne negra.

Há muito pouco tempo atrás eu mesma não acreditava que era racista. Não achava que era machista, muito menos preconceituosa. Mas na realidade, todos nós nascemos assim. Todos! E decidimos ou não, ao longo da nossa vida, viver um processo de ressignificação. Primeiro, entender que sim, somos tudo isso de negativo. Fazemos comentários grosseiros sem perceber, temos mais medo de um homem negro do que de um homem branco quando se aproxima de nós no meio da rua. Julgamos, alguma vez na vida, a postura de uma mulher pela roupa, maquiagem ou modo de sorrir. Nós julgamos o tempo todo. E a luta contra essa mente julgadora é diária. Todo tempo, todas as situações apresentadas em nossa frente precisam ser rebatidas constantemente pois o nosso senso de julgamento está sempre a postos, com o dedo em riste dizendo quem presta e quem não presta.

É uma desconstrução para uma reconstrução. A argila precisa estar molinha, flexível para a nova forma. Longe dos velhos conceitos e preconceitos que enrijecem as novas possibilidades de curvas da nossa alma.

Somente assim nossos olhos poderão ver os Moisés, as Janaínas, caras como aquele do poema, as Manuelas e tanta gente linda e interessante em nossa volta!