Anayde Beiriz – A última confidência e as primeiras lições

O desafio de construir caminhos já há muito trilhados não é para todos. Mais ainda quando a personagem de uma investigação é uma velha conhecida, daquelas que passam em um filme de época na memória e apascenta lembranças, representações por vezes datadas, porém ainda muito nítidas de um momento que não acaba mais. Anayde Beiriz é esta e todas as outras. Se não é um Mário de Andrade (trezentas, trezentas e cinquenta), ela é a jovem injustiçada, a representação da mulher empoderada, aquela que esteve no cerne do debate político dos anos de 1930. Em suas confidências, que lições podemos tirar da sucessão de acontecimentos na vida de uma personagem tão histórica quanto silenciada em suas próprias inquietações?

Em “Anayde Beiriz – a última confidência” (Editora A União, 2022), Valeska Asfora nos apresenta um livro misto: ora podendo ser lido como um monólogo no interior de uma entrevista imaginária entre a autora e a personagem (um diálogo entre duas mulheres), ora como uma investigação policial e histórica levando em conta as palavras de Anayde Beiriz, o contexto da época e o que aconteceu com ela. Silenciada pela presença patriarcal, política e ríspida de dois Joões (João Pessoa e João Dantas), cabe perguntar qual o espaço para a voz de Anayde Beiriz nas muitas biografias, obras e relatos de época que se sucedem sobre a sua memória e os acontecimentos políticos de 1930. As últimas confidências, afinal, apresentam algumas primeiras lições; dentre elas, a voz da personagem, tão pouco ouvida, passa a ser lida dentre os poemas, cartas, contos, registrados no livro não só como meras ilustrações, simples documentos jogados ao léu do entretenimento, mas acordes de uma música pouco ouvida pelos estampidos dos tiros que marcaram de sangue um país e uma bandeira.

Após o prefácio de Maria Valéria Rezende, refazendo os passos de Anayde Beiriz e o consumo cultural de sua época, além da apresentação da autora (espécie de remate de males, ainda nas metáforas andradeanas), o livro inicia com o capítulo “Parahyba – conservadorismo e novo cenário urbano”, em que as palavras correm pela conformação urbanística da Parahyba do princípio do século XX e os ares de modernização conforme estes eram compreendidos pelas elites políticas e financeiras daquele tempo. Em tom de investigação, a autora nos conduz pelas ruas e vielas de uma Parahyba que, à revelia dos haustos de modernidade, permanecia às voltas com as valas do conservadorismo e dos enleios morais de uma elite patriarcal, a exemplo do triste incidente da Praça Comendador Felizardo Leite.

O texto de Valeska Asfora caminha entre a luz e a escuridão. E não sem propósito este é um dos capítulos em que Anayde Beiriz é apresentada como a professora na Escola de Pescadores Presidente Epitácio Pessoa, aquela que passeia nos salões literários de época, recita os seus poemas que arregalam os olhos mais conservadores e desabrocha o preconceito contra o seu penteado “à lá garçonne”. Sua presença, auspícios, namoros, gostos literários são objeto de uma crônica de costumes digna de uma Dinah Silveira de Queiroz, continuada, em sua diegese própria, com a maravilhosa entrevista, concedida em 1924, no capítulo do livro acerca de suas confidências. E podemos imaginar que seria precisamente neste momento que Anayde Beiriz mais fala com o(a) leitor(a): se tomamos contato com uma Anayde Beiriz culta, que lê de Menotti del Picchia à Olavo Bilac, que se revela muito capaz de assertivas considerações sobre a vida, a morte e o teatro (“com especialidade o dramático”), que outra Anayde Beiriz foi aquela, tão inaudita através dos anos quanto silenciada por dois homens que a história enleva como espectros de um faroeste provinciano?

Nesta longa conversa entre Anayde Beiriz e Valeska Asfora, as cartas surgem como missivas das impressões da personagem sobre suas próprias emoções, tão racionalizadas quanto poéticas; tão marcadas pela esperança como pela desilusão; tão humanas que jazem, nas perguntas em forma de cavalo-marinho(?), o porquê da voz desta mulher não vir à lume por tantos anos. Nos contos e nos poemas, impressos no capítulo cinco, uma trajetória literária é interrompida pelo conjunto sucessivo de mal-entendidos e de enrascadas, resultado da vigilância política e do conservadorismo retratado de forma embrionária no primeiro capítulo. E tendo esta lembrança em mente, os fatos vivenciados como uma crônica policial no capítulo final são ainda mais dolorosos: vê-se o esmaecimento de Anayde Beiriz mediante os fatos políticos que culminaram na morte dos dois Joões e a perseguição que ela própria sofreu. Fatos descritos com correção, objetividade e ritmo fazem de “Anayde Beiriz – a última confidência” um romance entre o policial e o histórico (embora não seja um livro de ficção); uma crônica investigativa e psicológica que vai ao cerne das motivações, entre a vida, a morte e o teatro (“com especialidade o dramático”); para muito além do contexto mórbido e das bandeiras de sangue: algumas lições à luz do dia sem esquecer que a noite sempre vem.

E é com esta impressão final e definitiva que o livro nos deixa. A perseguição a Anayde Beiriz lembra, em muito, os tempos sombrios sobre os quais recai a sombra sempre densa e rude do fascismo disfarçado do pior e mais abjeto conservadorismo político. Aqueles fatos que culminaram na perseguição aos perrepistas, do incidente contra João Pessoa e as muitas “fake news” que correram contra supostos inimigos políticos são um retrato de um 1930 que não parece tão distante assim. A aparente “ousadia” de Anayde Beiriz, nas letras, nos costumes e em sua presença apenas se somou aos motivos que tiveram para persegui-la até seu enclausuramento e a posterior morte. Vê-se, entretanto, nos olhos da chamada “Pantera de Olhos Dormentes” (título de um dos seus contos), uma personagem que fala; e, em suas últimas confidências (poema de Vicente de Carvalho, preferido da personagem), nas palavras e no diálogo certeiro com a autora, algumas lições podemos tirar à luz dos tempos:

“A ‘adorável cidade dos Jardins’ onde Anayde Beiriz quis e ousou viver já não existe, a História seguiu seu rumo. E nesse tempo muitos escutaram, e ainda escutam, os coturnos em marchas pelas ruas, e percebem os olhares do ódio por trás das janelas. São pesadelos impostos em noites de escuridão por aqueles que não suportam a luz.” (ASFORA, 2022: 265)

REFERÊNCIA:

ASFORA, Valeska. Anayde Beiriz – a última confidência. João Pessoa: Editora A União, 2022.