Breves considerações sobre o dia da infâmia

O que houve no dia 8 de janeiro no Distrito Federal, com uma “horda de bárbaros” invadindo e depredando os prédios dos três poderes pode ser considerado o que Eugenio Bucci no artigo “A máscara mortuária” publicado no dia 11 de janeiro de 2023 no jornal o Estado de S. Paulo chamou de “o resumo compacto do governo Bolsonaro”, síntese dos piores momentos do que já foi péssimo. A versão tupiniquim do capitólio (evidenciando que o movimento da extrema direita é global) foi antecedida por um governo e Poder Executivo, como ele afirma, que se estruturou, desde o início, com um projeto articulado de ruptura da ordem democrática :“Os depredadores teleguiados encenaram a sanha-mestra do bolsonarismo: a vandalização das instituições democráticas, do patrimônio histórico, dos valores culturais, da política, da Justiça e dos equipamentos públicos. O governo defunto parece ter reencarnado na malta para terminar o serviço de destruição que deixara incompleto. (https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/mascara-mortuaria/).

O que ocorreu foi claramente uma tentativa de golpe, com o apoio das Forças Armadas e setores da polícia militar do Distrito Federal e parte da sociedade que, se não esteve presente nos atos, apoiou, como apoiou as concentrações golpistas em frente aos quartéis, com a conivência que se conhece, de quem não deveria permitir (e até mesmo impediu que se retirassem).
Muito já se escreveu e publicou sobre o chamado dia da infâmia, como disse Bucci no referido artigo “a turba em catarse condensou em performance a ideologia do governo ido”. Repudiado por muitos, também teve seus defensores, como alguns comentaristas da (mais explicitamente) bolsonarista Jovem Pan, fazendo seu papel não de jornalismo, mas como defensores de Bolsonaro (e dos atos).

O que fizeram os criminosos, fanatizados e enlouquecidos, tontos úteis incitados, financiados e estimulados, foi colocar em prática essência do bolsonarismo: no caso a tentativa de destruição das instituições democráticas, dos valores culturais,. Nos atos, não por acaso a fúria de destruição : de quadros, obras de artes etc., revelando a estupidez e ignorância não apenas em relação à política (contra um governo constituído legitimamente) como revelou também o ódio à cultura do governo Bolsonaro (inexpressividade de dirigentes, o desprezo à cultura, com os parcos recursos etc.), mas também de tudo que foi dito e feito em relação à ciência, a saúde pública (descrença e descaso em relação à vacina), à justiça, com os ataques sistemáticos ao Tribunal Superior Eleitoral(TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

O que os atos revelaram foram não apenas afronta à democracia, o que é muito grave, como a destruição dos equipamentos públicos (que não pertencia, nem pertence aos presidentes, nem aos seus governos, mas se trata de patrimônio público). Alguns se referiram (ridiculamente) a “reintegração de posse”, e se o fizeram, mesmo que brevemente, o que significa querer destruir o próprio patrimônio? E mais: muitos dos que invadiram e depredaram eram os que desprezavam os direitos humanos (e falavam de “humanos direitos”) e que depois de presos, perguntavam: cadê os direitos humanos? Então só vale para eles? São esses os homens (e mulheres) de bem de Bolsonaro? Os que destruíram o que “era” deles? E mais ainda, como alguém perguntou: o que vai à mente turva não apenas de quem obedece, mas de quem comanda esse tipo de gente?

O fato é que isso foi apenas resultado. O pior veio antes e pavimentou o caminho do que alguém chamou de “patetas destruidores”, criminosos à soldo da extrema direita. Um Poder Executivo, que desde o início tinha como objetivo: instaurar um Estado de exceção. Uma horda de vândalos com a intenção (e objetivos) de concluir o serviço de destruição que o governo Bolsonaro ainda não tinha conseguido e ao mesmo tempo foi uma das expressões do seu governo. Mas creio possível afirmar que os atos foram antecedidos por um processo que se origina em 2013, que começou a chocar o “ovo da serpente” e construiu as bases do neofascismo, que toma impulso com o golpe contra a presidente Dilma Rousseff em 2016 e especialmente na eleição e no governo de Bolsonaro.

Lênio Streck no artigo “Quem pariu o 8 de janeiro e quem o embala?”, publicado no Conjur no dia 12 de janeiro de 2023, chamou o dia 8 de janeiro de “o dia da vergonha” que todos deveriam repudiar, mas que “lamentavelmente muitos, inclusive parlamentares, advogados, jornalistas etc., em total dissonância cognitiva buscaram justificar” e salienta que os atos foram antecedidos, entre outros aspectos, pelo processo sistemático de criminalização da política e a fragilização das instituições que pavimentou o caminho para Bolsonaro ser eleito (com o apoio da grande mídia, de lideranças de igrejas neopentecostais etc.,) e os atos criminosos foram apenas consequência do desprezo às instituições e uma tentativa de golpe para instaurar uma ditadura no país.

Streck destaca também o papel central do ex-presidente com suas pregações golpistas e sua “forma insana de autocratismo”. Para ele, o 8 de janeiro foi também resultado do fanatismo, da estupidez, ignorância e violência. No artigo, ele se refere à obra de Shakespeare, o Rei Lear “que dizia que há de se saber envelhecer para não colher o único fruto que a idade pode dar em troca de todas as outras perdas: o conhecimento, a sabedoria.” Tudo que faltou no ato, antes, durante e depois dele. Ele faz também referência à operação Lava Jato, com uma pergunta pertinente quanto à conivência do meio jurídico, ao se constatar a sucessão de ataques à Constituição: quantos Juristas perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo, que resultou no bolsonarismo (que, saliente-se, já existia mesmo sem ele)?

Nesse processo se compreende como se deu o desmonte do estado brasileiro, o desmantelamento de órgãos como o IBAMA, FUNAI e outros, com pessoas reconhecidamente incompetentes e despreparadas (ou preparadas para destruí-los), órgãos que estão sendo reconstruídos, com muito esforço no governo Lula, depois do “vendaval bolsonarista”. E não apenas esses órgãos, também outros como o próprio Itamaraty com um chanceler sem a devida qualificação, cujo único “mérito” que tinha era ser de extrema direita e a fidelidade ao “mito” e que conseguiu isolar o Brasil do mundo (“se é para ser pária, sejamos pária”, que é uma de suas frases lapidares), e que agora, em outro contexto, está sendo reconstruído também no governo Lula.

Em relação aos atos, se houve uma compreensível repulsa, pelo menos dos democratas e de não fanatizados, há de se ter consequências penais exemplares para evitar que algo semelhante possa ocorrer no futuro, que não pode nem deve ser descartado, mesmo com a prisão de muitos participantes, ou seja, que a justiça faça sua parte, punindo exemplarmente não só a turba ensandecida, os criminosos que invadiram e depredaram os prédios das três instituições, como quem estava por trás, teleguiando a estupidez (há um nível de alucinação – individual e coletiva – sem precedentes na história do país, como chamar o governo de Lula de comunista, revelando a extensão da ignorância), instigando, financiando (não apenas) os prevaricadores, armados ou não. Se ficarem impunes, vão continuar a tramar e tentar novamente. Em síntese, é fundamental usar os rigores da lei em defesa do Estado Democrático de Direito para evitar que esses atos de barbárie e vandalismo se repitam. Ao mesmo tempo, importante que o governo Lula envide todos os esforços, como tem procurado fazer, para combater a desinformação, a fábrica de fanatismo, que são as bases do neofascismo no Brasil, que se conecta com a extrema direita global e muitas vezes age em aliança com ela.