O Brasil de Antolhos e a igreja do diabo

Gosto muito dos textos de Machado de Assis, especialmente os realistas e naturalistas. Dentre estes, tenho particular predileção pelos seguintes: O alienista, Memórias Póstumas de Brás Cubas e A Igreja do Diabo. Na coluna de hoje fugirei um pouco das abordagens acadêmicas para trazer um pouco da lucidez de Machado de Assis a partir do conto A Igreja do Diabo, publicado em 1884 no livro Histórias sem data. Peço licença aos professores de literatura desde já para me aventurar nesse conto atualíssimo e que nos brinda com a possibilidade de uma excelente reflexão sobre a atual conjuntura político-social e religiosa do Brasil, mostrando que realmente essa é uma história sem data.

O texto machadiano traz uma crítica certeira sobre as contradições e condições da humanidade em sociedade. O autor retrata o ser humano de forma nua e crua em personagens que trazem consigo a dicotomia entre o bem e o mal. O Diabo, se aproveitando da dicotomia existente na humanidade buscou conquistar a hegemonia entre as religiões do mundo inteiro, e por isso, prometeu infinitos lucros aos que a ele se ajoelhassem. 

E assim começa essa história… “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma Igreja (…). Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez” (MACHADO, 1884). O diabo então vai ao encontro do próprio e Deus, que o recebe pacificamente, para dizer-lhe de sua ideia genial. De modo irônico compara a religião a um comércio: “Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto.”, pois, segundo ele, é dispendioso viver de acordo com as leis da Igreja, se referindo ao dízimo pago em troca da suposta salvação. Após seu diálogo, o Diabo foi imediatamente transferido para a terra e, finalmente, fundou sua Igreja com o maior dos propósitos: dividir as igrejas já existentes para então destruí-las, colocando igreja contra igreja, “Escritura contra escritura” (MACHADO, 1884), desafiando a Deus e esperando os aplausos do Senhor por seu plano diabólico, até porque o Diabo lhe nutria grande admiração, e não por acaso! Mas Deus não lhe aplaudiu e ainda lhe respondeu: “Tu és vulgar, que é o que pode acontecer a um espírito da tua espécie (…). Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto” (MACHADO, 1884).

O diabo, como um espirito negacionista que é (no texto ele se afirma como um espírito que a tudo nega), não deu ouvidos as palavras divinas, pois sua maior característica é a misantropia, que nada mais é que a antipatia, o ódio ou desprezo pela humanidade. Aliás, o diabo não é humano e lhe tem aversão, por isso mente, visando criar a discórdia e polinizar o ódio, pois o diabo é o pai da mentira!

E assim o diabo na terra começou a arrebanhar seus adeptos. Logo conseguiu uma multidão com o discurso de que “as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as legítimas e naturais” (MACHADO, 1884), deturpando, distorcendo e desfigurando os valores humanos e Cristãos, incutindo “toda ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs” (MACHADO, 1884). A lógica do capital também era coisa do diabo e por isso “não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária” (MACHADO, 1884), louvando, exaltando a venalidade.  Além disso, o respeito foi substituído pela adulação, à solidariedade pela indiferença, dentre outros. De tal modo o diabo fundou sua igreja e iniciou a propagação de sua doutrina. Após alguns anos, no entanto, algumas pessoas livraram-se dos antolhos diabólicos e começaram a enxergar o mal que estavam a praticar no mundo, fazendo valer a máxima de que não há mal que dure para sempre.

O que nos chama atenção, trazendo para a realidade da atual conjuntura no Brasil, é a grande quantidade de igrejas que hoje dividem os Cristãos e distorcem valores essencialmente morais e necessários à existência harmônica da humanidade. Ver pessoas dentro de templos pregando o uso de armas, fazendo simbolicamente o gesto com as mãos de uma arma; profanando festas e liturgias religiosas, negando e violando a autoridade conferida pela igreja Cristã, como aconteceu recentemente em agressões a padres e bispos da igreja católica; pessoas apoiando e venerando valores daqueles que usam do púlpito para pregar o ódio e a violência, substituindo o Cristo pelo mito é algo impensável e destoante. Então fica a pergunta: essas pessoas usam antolhos? Elas estão na Igreja de Deus ou na Igreja do Diabo?

Valores morais são princípios que orientam a conduta das pessoas em uma sociedade e dizem respeito ao bem, ao coletivo, a comunidade. Mas a empatia, a solidariedade e o amor ao próximo parecem ter sucumbido aos discursos de ódio, ao negacionismo, as mentiras que hoje são chamadas de fake news e que causam grande dano ao tecido social e democrático. Como bem descreveu Machado de Assis, o Diabo, além de negacionista, é o pai da mentira e esse diabo parece ter fundado sua igreja bem aqui, na nossa frente. 

A partir dessa reflexão eu gostaria de propor uma outra: reflita sobre os valores humanos partilhados, sobre o que se quer para o futuro, se é a verdade, a democracia e a paz ou se é uma sociedade armada com fuzis e granadas metralhando os diferentes e com discursos de que a minoria deve se curvar a maioria. Eu acredito no ditado popular que afirma que não há mal que dure para sempre. Creio ainda na humanidade que habita em nós e nos princípios da alteridade, da empatia e da coletividade, por isso, acredito que podemos escolher e que a escolha é pela esperança de um país que vai voltar a sorrir e viver em irmandade, sem mentiras e sem ódio. É hora de tirar os antolhos e reconstruir a igreja da paz, do amor e da esperança para mandar o diabo de volta para o lugar de onde ele jamais deveria ter saído.

Referências:

ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000195.pdf