Réquiem para Noémia de Sousa

De vida itinerante, Noémia de Sousa era considerada a mãe dos poetas de Moçambique. Seu único livro publicado foi o Sangue Negro, que reúne poemas dispersos espalhados entre jornais e revistas. Afirmou, certa feita, que não gostaria de vender seus livros se seu povo não tivesse dinheiro para comprá-los. Nesta toada, Noémia inaugurou debates importantes sobre a independência de seu Moçambique natal; pode-se dizer que se afirmou ainda dentre aqueles que formaram a Casa dos Estudantes do Império (CEI) e integraram a revista Mensagem.

A Casa dos Estudantes do Império (1945) congregou os chamados estudantes ultramarinos africanos em Lisboa. Pensava-se a independência nestas colônias em contos, crônicas, ensaios e poemas na revista Mensagem (1949). Assim, tornaram-se conhecidos Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Maria do Céu, Alda do Espírito Santo, dentre outros. Um pouco da rotina dos estudantes da Casa dos Estudantes do Império é contada no romance A Geração da Utopia, do escritor angolano Pepetela.

A vida de Noémia de Sousa, por sua vez, foi de fugas: quase sempre da polícia política portuguesa (a PIDE), com seu livro já sendo distribuído desde 1951 de forma clandestina. Como jornalista, militou pela libertação nacional das colônias portuguesas na África, cobriu as lutas pela independência e, em 1973, viu a Revolução dos Cravos. Sua poesia faz referência à cultura negra e ao sentimento de nacionalidade africano, influenciada pela poesia portuguesa e latino-americana através de Cuba (a ilha servia de inspiração política de libertação nacional).

Se Mia Couto estiver certo quando afirmou serem as leituras que cruzavam o Atlântico e chegavam à África vindas do Brasil que teriam dado uma noção da aproximação da literatura brasileira com a literatura africana, Noémia de Sousa merece ser conhecida no Brasil em sua edição de 2016 pela editora Kapulana do livro Sangue Negro. “Súplica”, um de seus poemas mais conhecidos, aborda a submissão dos moçambicanos sob o Estado Novo. As dificuldades, o dia-a-dia e as dores do colonialismo e da escravidão. A súplica não é aos portugueses, e sim aos moçambicanos. Sendo música, pedem-se dias melhores.

Este texto é uma homenagem deste colunista à grande jornalista Glória Maria, que nos deixou neste 02 de fevereiro de 2023.

Súplica

Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!

Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim:
um labirinto de xadrez…

Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a tua lírica de xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos na vida)
tirem-nos a palhota – humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
tirem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
̶ mas não nos tirem a música!

Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!

E tudo será novamente nosso,
ainda que cadeias nos pés
e azorrague no dorso…
E o nosso queixume
será uma libertação
derramada em nosso canto!
̶ Por isso pedimos,
de joelhos pedimos:
Tirem-nos tudo…
mas não nos tirem a vida,
não nos levem a música!