Por uma leitura crítica da comunicação digital

Este artigo trata brevemente de algumas reflexões sobre comunicação digital do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e mais especificamente do livro No Enxame: perspectivas do digital (publicado em 2013 na Alemanha e em 2018 no Brasil pela Editora Vozes). Nascido em Seul em 1959, ele cursou graduação e pós-graduação na Alemanha (Filosofia na Universidade de Freiburg e depois Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique). Hoje é professor de Filosofia na Universidade das Artes de Berlim.

Ele é autor de muitos livros, grande parte deles publicados em português pela Editora Vozes, como Vida contemplativa ou sobre a inatividade (2023), Infocracia: digitalização e a crise da democracia (2022), A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje (2022), O que é o poder (2019), Topologia da violência (2017), Agonia do Eros (2017) Sociedade da transparência(2012), Topologia da violência (2011), Sociedade do cansaço (2010) , além de outros como Psicopolítica – neoliberalismo e novas técnicas de poder ( Relógio D’Água, 2015).

Em geral seus livros são constituídos por textos curtos (e densos) mobilizando um conjunto de autores muito heterogêneos, como entre outros, Hegel (é autor do livro Hegel e o poder: Um ensaio sobre a amabilidade ,Vozes, 2022), Martin Heidegger (tema de sua tese de doutorado), Jean-Paul Sartre, Carl Schmitt, Lacan, Roland Barthes, Hannah Arendt, Vilém Flusser, Franz Kafka, Walter Benjamin, Michel Foucault, Michael Hardt e Antonio Negri.

O livro No Enxame é uma leitura crítica comunicação digital. Para ele “embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual” (p. 13).

Enxame é uma metáfora sobre interações entre as pessoas mediadas pelos ambientes digitais. Essencialmente, Han argumenta que o enxame não possibilita a formação de um espaço público que leve à participação, mas ao contrário, faz com que as pessoas ao atuarem como enxame se isole.

Para ele, não se deve confundir enxame com massa. Como ele diz, a noção de massa surgiu no século XIX, com os efeitos da segunda Revolução Industrial e cita os estudos pioneiros do psicólogo francês Gustave Le Bon (1841-1931) que publicou em 1895 o livro A Multidão: Um Estudo da Mente Popular (traduzido no Brasil como Psicologia das multidões, Editora Martins Fontes, 2019). Segundo Han “A massa aparece para Le Bon como um fenômeno da nova relação de soberania. O ‘direito divino das massas’ substituiria ‘o direito divino do rei’ e a insurgência das massas leva tanto à crise da soberania como o declínio da cultura (…) Segundo Le Bon as massas seriam “destruidoras da cultura”(p.26).

Gustave Le Bon foi um dos teóricos do racismo científico, afirmando entre outras coisas, que havia raças superiores e que um povo constituído por mestiços seriam sempre ingovernáveis. Essencialmente, suas concepções justificavam o colonialismo das potências européias.

As massas atuam como um aglomerado de “ninguéns”, sem perfil próprio ou identificação. E para Han, com a era digital há uma transição, o que ele chama de revolução digital, na qual a nova massa é o enxame (digital).

Nesse sentido, nas sociedades atuais as pessoas se comportam mais como enxames, singularizados (“o enxame digital consiste em indivíduos singularizados”) e sem participação política e ainda que possam agir anonimamente, tem um perfil que busca nutrir o tempo inteiro, clamando por atenção.

Um aspecto importante no livro é a noção de respeito. No capítulo Sem respeito, ele afirma que o respeito “pressupõe um olhar distanciado, um pathos da distância. Ele é o alicerce da esfera pública. Hoje, ele dá lugar a um ver sem distância e que “domina uma falta total de distância, na qual a intimidade é exposta publicamente e o privado se torna público” (p.12) e assim “A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada (p.13). É uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância. Para ele, o respeito está ligado aos nomes. Anonimidade e respeito se excluem mutuamente. A comunicação anônima que é fornecida pela mídia digital desconstrói enormemente o respeito (p.14).

Sem respeito e sem distinção entre o público e o privado. A comunicação digital nas redes sociais destrói a distância de modo generalizado e a falta de distância leva ao que é privado e público a se misturarem. É o fim da privacidade: elas se tornam espaços de exposição do privado no qual nenhuma esfera pública é possível. É o que ele chama de o triunfo da cultura da indiscrição e da falta de respeito.

Um aspecto central na comunicação em geral é a informação. Só que o excesso, a enxurrada hoje disponível a que todos se submetem para “se informar” leva ao cansaço (ver A sociedade do cansaço,2010) e como ele diz, até mesmo distúrbios psíquicos como a Síndrome da Fadiga de Informação, causada pelo excesso. O físico espanhol Alfons Cornella chamou de “infoxicação”, que é a soma das palavras informação e intoxicação, que corresponde ao excesso de conteúdos que não se consegue absorver causando dispersão (dificuldade de concentração), depressão, estresse, ansiedade, com a necessidade de estar sempre conectado às mídias digitais.

Trata-se de uma profusão constante, não filtradas e que fundamentalmente, não mais se distingue o que é essencial e o que não é. Com o volume incessante de informações, não há tempo necessário para processá-las (um exemplo recente é a guerra entre Israel e o Hamas. São tantas informações (e desinformações, mentiras, manipulações etc.), com uma cobertura midiática intensa, o dia todo, especialmente nas TVs, além de artigos, ensaios, de especialistas e não especialistas em jornais, sites, blogs etc., que fica difícil uma compreensão mais ampla e contextualizada de suas causas e consequências).

Em relação à comunicação, Carlos Geli, no artigo Byung-Chul Han: hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização (jornal El País, 7 de fevereiro de 2018) diz: “Sem a presença do outro, a comunicação degenera em um intercâmbio de informação: as relações são substituídas pelas conexões, e assim só se conecta com o igual; a comunicação digital é somente visual, perdemos todos os sentidos; vivemos uma fase em que a comunicação está debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os mais iguais; o igual não dói!”.

Han se refere ao que chama de fantasmas digitais (p.95-101), aludindo ao fato de que a comunicação digital cria distância do real e em vez de aproximar, de ampliar as possibilidades de comunicação, gera indivíduos isolados e que assim sendo, não podem agir politicamente como cidadãos, mas como consumidores passivos.

No livro O Cérebro no Mundo Digital – Os desafios da leitura na nossa era (Editora Contexto, 2019) Maryanne Wolf, pesquisadora e diretora do Centro de Dislexia, Aprendizagem Diversa e Justiça Social da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA,) afirma que o fato de as pessoas lerem cada vez mais em telas, e de apenas “passar os olhos” superficialmente em múltiplos textos e postagens online limita a capacidade de compreender argumentos mais complexos, de fazer uma análise crítica do que se lê e criar empatia por pontos de vista diferentes.

Outro aspecto relevante é que com o desenvolvimento tecnológico a vigilância e o controle passam a ser partes inerentes da comunicação digital e mais: a ditadura da transparência, o colapso da privacidade contribui para o conformismo. Como diz Han, a comunicação se torna cada vez mais um corpo sem rosto “pobre de olhar”, são dispositivos que possibilita ao mesmo tempo ficar perto das pessoas – em rede – mas fisicamente longe do contato. E um ambiente onde tudo é visível, tudo é transparente, tudo é de conhecimento público, o privado é retirado de cena.

O controle não se dá mais através de proibições e sim da vigilância e do acúmulo de dados que permite aos que detém os dados (governos, empresas etc.) conhecerem melhor as pessoas do que elas mesmas. É o que ele chama de nova técnica de controle de psicopolítica.

Para ele dirigimo-nos hoje, à era da psicopolítica digital. A psicopolítica é uma técnica de dominação que recorre a um poder que seduz, que faz com que as pessoas se submetam por elas mesmas às forças da dominação, e pior, sem ter consciência disso. A sua eficácia é fazer com que os indivíduos pensem que são livres, quando na realidade não o são: a psicopolítica está em posição para, com ajuda da vigilância digital, ler e controlar pensamentos e comportamentos do inconsciente coletivo “a psicopolítica se empodera do comportamento social das massas ao acessar sua lógica inconsciente; A sociedade digital de vigilância, que tem acesso ao inconsciente coletivo, ao comportamento social futuro das massas, desenvolve traços totalitários” (No enxame, p.134).

Como ele explica no livro, mais especificamente no capítulo intitulado O Big Brother amável, a psicopolítica utiliza e se apropria dos dados que as pessoas entregam voluntariamente e assim permitem que seus comportamentos sejam previsíveis. Por que amável? Porque “em vez de confissões extraídas por meio da tortura, tem lugar uma exposição voluntária. O smartphone substitui a câmara de tortura. O Big Brother tem uma aparência amável. A eficácia da sua vigilância reside na sua amabililidade” (Psicopolítica, 2015, p.48).

Ao discutir o conceito de multidão formulado por Antonio Negri e Michael Hart (Multidão – Guerra e democracia na era do Império, Editora Record, 2005) afirma que não se trata mais de multidão, mas de pessoas isoladas, solitárias, que é o que caracteriza a constituição social atual e na qual a solidariedade desaparece .

Para ele, “o homo digital não é ninguém, mas um alguém anônimo que não se reúne e assim não desenvolve nenhuma energia política porque o que faz é efêmero, volátil e instável e por isso mesmo (…) não está em condições de colocar em questão a relação de poder dominante. O habitante digital da rede não se reúne. Falta a ele a interioridade da reunião que produziria um Nós. Eles são, antes de tudo, isolados para si, singularizados, que apenas se sentam diante da tela. Portanto, não há solidariedade e sim uma erosão do comunitário”.

Ele faz alusão ao gigantesco poder do Big Data, um conjunto imenso de dados no qual tudo é mensurável e quantificável, e que possibilita atuar como forma de controle muito mais eficaz porque dispõem de dados sobre todos.

Que consequências uma sociedade digital de vigilância traz para a democracia? Graves, na medida em que as novas tecnologias tem acesso ao comportamento social (com a exposição constante das pessoas nas redes sociais) e nesse sentido, a possibilidade de controle é muito grande, tornando também possível inclusive prever modelos de comportamentos coletivos. Como sair do enxame e tornar a comunicação digital democrática? Através de plataformas digitais, sem que haja qualquer tipo de controle e regulamentação? Deve-se permitir que as grandes corporações (e governos) usem tecnologias cada vez mais sofisticadas para não apenas localizar e monitorar as pessoas, mas isolá-las, torná-las apenas consumidoras passivas, sem capacidade de resistência ou mobilização, legitimando assim o sistema de vigilância, de manipulação, pondo em risco à própria democracia? Esse, me parece, é mais um dos grandes desafios para a democracia.