Quem tem saudades da ditadura?

No dia 25 de março de 2019, três meses do início do governo de Jair Bolsonaro, o então porta-voz da presidência da República, general Otávio Rêgo Barros, comunicou que o presidente havia determinado ao Ministério da Defesa que deveriam ser feitas comemorações em unidades militares para os 55 anos do que chamava de “revolução democrática” de 1964. Antes, em 2011 no primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff – que foi torturada por militares quando foi presa em 1970 – ela determinou a retirada do calendário oficial de comemorações das Forças Armadas o dia 31 de março. Até então, na Ordem do Dia nos quartéis do país, comandantes faziam discursos exaltando a ditadura e cancelou também uma palestra do general Augusto Heleno, então diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia, que tinha o título “A contrarrevolução que salvou o Brasil”.

Mas é importante destacar que embora as comemorações fossem retomadas em 2019, não foram aceitas passivamente. No dia seguinte, 26 de março de 2019, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, divulgou uma nota assinada pelos procuradores federais Deborah Duprat, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Marlon Weichert e Eugênia Augusta Gonzaga, na qual repudia a orientação dada pelo presidente e afirmam que o que houve na verdade foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional, e a instauração de um regime caracterizado por restrições a direitos fundamentais dos cidadãos e repressão sistemática à dissidência política, que incluiu opositores na imprensa, sindicatos, partidos, movimentos sociais, etc.

Para eles, “Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República” e concluem afirmando que “A gravidade desses fatos é de clareza solar”.

Em 2023, Pela primeira vez em cinco anos, as Forças Armadas não divulgaram mensagem comemorativa do golpe militar de 1964. Por determinação do presidente Lula e do Ministério da Defesa, estabeleceu-se que haveria punição em caso de qualquer tipo de celebração da data por militares da ativa, o que incluíam também postagens em redes sociais. O comandante do Exército, general Tomás Paiva, afirmou que haveria punições a oficiais que comemorarem o aniversário do golpe ou participarem de eventos organizados por militares da reserva.
Em 1964 não houve uma “revolução democrática” e sim um golpe de Estado, destituindo um presidente legitimamente eleito, justificado (pelos golpistas) como uma resposta aos perigos de uma suposta ameaça comunista no país, quando o objetivo foi o de manter (como manteve) o poder nas mãos das elites militares e civis que se opunham às reformas sociais e trabalhistas defendidas pelo presidente João Goulart.

Com o golpe tem início uma ditadura de 21 anos (1964-1985), um período de exceção, marcado por censuras, torturas, assassinatos, cassação de direitos, fechamento do Congresso Nacional e sem eleições diretas para presidentes da República (só voltou a ser realizada em 1989).
Em 2023, transcorridos 38 anos do fim da ditadura e 59 anos do golpe, quem ainda tem saudades da ditadura? Uma das explicações pode ser a possibilidade de algumas pessoas (civis e militares) que a defendem, manterem privilégios e regalias que a ditadura concedeu aos seus apoiadores, mas há também muitos os fazem por pura ignorância, por não terem informações sobre o que ocorreu e assim são vítimas de mentiras que foram sendo ditas e repetidas ao longo do tempo.

Para estas pessoas, há hoje a possibilidade de se informarem: uma enorme quantidade de livros, documentários, filmes, peças teatrais, músicas e distintas formas de expressões culturais que revelam o que ocorreu nos 21 anos de ditadura no Brasil.
São muitas investigações e pesquisas sobre o período de 1964-1985 hoje acessíveis como portais no internet, canais no youtube e sites como, entre outros, Memórias da ditadura (Portal do Instituto Wladimir Herzog, com artigos, indicações de livros, filmes, pesquisas acadêmicas etc.); Aparecidas – Centro de Referências em Estudos sobre a Mulher na Ditadura, iniciativa do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado – LUPPA – da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Memorial Anistia (acervo digital de movimentos sociais que lutaram pela anistia como o Movimento Feminino pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia (com depoimentos, material audiovisual, cartazes etc.). Ressalte-se que em 2002 foi criada uma Comissão de Anistia e que foi aparelhada por militares durante o governo Bolsonaro, e o resultado é que entre 2019 e 2022, o órgão julgou 4.285 processos e não por acaso, 95% (4.081) dos pedidos de indenização foram rejeitados. (Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/politica/apos-governo-bolsonaro-brasil-vive-o-31-de-marco-sem-comemorar-o-golpe-de-1964).

Em março de 2023 o Ministério de Direitos Humanos, organizou a “Semana do Nunca Mais”, com diversas atividades voltadas à preservação da memória, da verdade e da justiça sobre o período da ditadura. Para o ministro Silvio Almeida “Rechaçar os crimes e as violações de direitos humanos ocorridos na ditadura civil-militar brasileira não significa criticar as Forças Armadas, mas apontar para um período da história que todos, sem exceção, devem deixar para trás (…). E isso não se dará silenciando sobre este período, mas conhecendo-o profundamente para que não deixemos que se reproduza no presente, como hoje o faz por lamentáveis atos de violência e ameaças contra cidadãos e instituições democráticas.”

Mas mesmo assim, muitos continuam a defender ditadura, como os que se aglomeraram em frente aos quartéis pedindo intervenção militar e uma ditadura, com Bolsonaro à frente. E uma das formas de se conhecer o que se passou no Brasil durante a ditadura, pode ser através da leitura de inúmeros livros publicados desde o início do processo de redemocratização em 1985, como entre outros, Brasil: Nunca Mais (Editora Vozes, 1985) com prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, então arcebispo da arquidiocese de São Paulo. O livro foi resultado do Projeto Brasil: Nunca Mais desenvolvido por ele, o Rabino Henry Sobel e o Pastor presbiteriano Jaime Wright com apoio de um grupo de defensores dos direitos humanos que realizaram um exaustivo trabalho (foram seis anos, entre 1979 e 1985) que sistematizou informações de mais de um milhão de páginas de 707 processos que estavam no Superior Tribunal Militar, e teve como base as denúncias feitas em juízo por suas vítimas e expõe, com detalhes, torturas , inclusive as formas e instrumentos (pau-de-arara, choques elétricos, “cadeira do dragão”, uso de insetos e animais nas torturas etc.), assim como denuncia torturas em crianças, mulheres e gestantes (p.43 a 50) trazendo ainda uma lista de desaparecidos políticos, a “repressão contra tudo e contra todos”(setores sociais, militares, sindicalistas, estudantes, políticos, jornalistas e até religiosos) e a subversão do Direito (A formação dos processos judiciais, os Inquéritos Policiais Militares, as denúncias, prisões preventivas, como se construíam as “provas” e se davam as confissões, assim como o resultado das sentenças e dos recursos negados (p.169 a 188).

O livro revela a extensão da repressão política no Brasil durante a ditadura e não apenas denunciou as torturas, como revelou as identidades dos torturadores, as perseguições, os assassinatos, os desaparecimentos. Sobre as torturas que eram praticadas nas delegacias, unidades militares, e em locais clandestinos, detalhado na 6ª. Parte (Os limites extremos da tortura) como a “Casa dos horrores”, A Casa de São Conrado e a Casa de Petrópolis, no Rio de Janeiro, entre outros.

Não por acaso, em função dos relatos de torturas desta e de outras ditaduras, foi aprovada pela Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1984 a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Castigos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Outro documento importante é o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (que funcionou entre 2012 e 2014) confirmando que o Estado ditatorial brasileiro praticou graves violações aos direitos humanos, que se qualificavam como crimes contra a humanidade, informando que os órgãos de repressão assassinaram ou desapareceram 434 pessoas e mais de oito mil indígenas, afora os milhares de pessoas que foram presas (e muitas torturadas) ilegalmente. (o relatório final está disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571).
Para Jacques Távora Alfonsín, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos

Humanos, ao se referir à retomada das comemorações do golpe afirma que “é incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes”. E que “O Golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, à conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como o crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto no artigo 5°, inciso XLIV, da Constituição de 1988” (https://ihu. unisinos. br/categorias/587996-1-de-abril-de-1964-golpe-de-estado-e-golpe-ditadura-e-ditadura).
Nesse sentido, festejar a ditadura é, portanto, festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos e soa como diz o autor “como apologia à prática de atrocidades e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo das repercussões jurídicas”.

Nesse momento, é fundamental a defesa e avanço da democracia, ameaçada pelo crescimento da extrema direita, e não apenas no Brasil. Em um livro publicado em 2012, Os inimigos íntimos da democracia (São Paulo, Editora Companhia das Letras) Tzvetan Todorov indaga – e tenta responder – sobre quem são os inimigos da democracia e alerta para os perigos enfrentados pelos regimes democráticos e constata os problemas enfrentados pelas democracias no mundo (e o faz mesmo antes do crescimento da extrema direita no mundo e na Europa em particular) é quando o povo se transforma em massa manipulável e que “a economia, o estado e o direito deixam de serem meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização”.

No entanto, salienta que viver em uma democracia, mesmo com todos os seus problemas e limitações, continua sendo preferível a uma ditadura. Para ele, a democracia tem sido corroída por seus inimigos que têm agora uma aparência menos assustadoras do que as de ontem (tomadas de poder por golpes militares etc.), e que agora usam os trajes da democracia para atacá-la por dentro e isso não pode e nem deve passar despercebido, porque não deixam de representar uma grande ameaça e afirma que se não houver resistência se “conduzirá a um desapossamento dos seres e a uma desumanização de suas vidas”. Esse é um perigo das ditaduras e por isso devemos repudiar e poder comemorar não ditaduras, mas a democracia. Ditadura, nunca mais.