Opinião

Teria sido um golpe miliciano com apoio liberal

Eu assisti aos 93 minutos da reunião que tentou tramar um golpe de estado para que você não precisasse passar por isso.

De nada.

Aqui o que vi:

Trata-se de um documento tão histórico quanto nauseante. Jair Bolsonaro e sua língua abjeta e torta passam bastante tempo falando, embora a concatenação de ideias seja coisa rara.

Tem de tudo na lama verbal regurgitada: tem recalque, tem amargura, tem medo, tem ameaça, tem linguagem de máfia, tem a eterna obsessão com a coragem de Dilma, tem sua masculinidade frágil derramada sobre a mesa – e tem a criminosa omissão da chamada ala técnica do governo, tão paparicada por liberais durante esses anos, que leva o nome de Paulo Guedes.

Está ali numa reunião de hora e meia escancarada a relação entre liberalismo e fascismo: o silêncio que compactua, que diz “vai fundo”, “estou com você”, “é o que precisa ser feito”, “vai que te dou retaguarda porque não posso sujar de sangue meu Armani”. Na história, o fascismo sempre atuou como a válvula da panela de pressão que deixa sair parte da tensão causada pelo Capitalismo. Andam juntos, de mãos dadas, há décadas. Mas esse é assunto para outro texto.

E tem, claro, a cinematográfica participação militar pela voz de um general que há anos, desde o massacre em Cité Soleil, no Haiti, ou mesmo antes, quando era um capitão tentando dar um golpe em Ernesto Geisel – um golpe dentro do golpe, portanto – já deveria ter sido trazido à luz da verdade: Heleno.

O Brasil nunca restou livre de militares enfiados na política, de forma direta ou indireta. Quando não estavam no poder, estavam metidos com o poder: mandando, desmandando, palpitando, criticando.

Jamais realizamos com afinco uma comissão da verdade como as executadas pela Argentina e África do Sul para expor as vísceras da ditadura de 64. Nem FHC, nem Lula bancaram uma. Dilma tentou, e deu no que deu.

Por isso, aceitamos com naturalidade que um deputado insignificante como Jair Bolsonaro entrasse mediaticamente em nossas vidas pelo humorístico CQC apoiando torturadores e a prática da tortura durante as audiências da comissão da verdade no governo Dilma. Muitos acharam graça quando ele debochou de Dilma, torturada durante a ditadura. E sob nossa omissão, o deputado que votou por um golpe de estado rendendo homenagem ao mais cruel torturador da República foi eleito presidente.

Eleito, ele seguiu falando de Dilma sempre que podia. Foi uma afronta muito grande que a única presidente mulher tivesse sido também a única a bancar uma comissão da verdade, que infelizmente nunca chegou ao fim. Bolsonaro, o machão que corre quando a polícia chega e faz flexão de braço com a deprimente mecânica de um pombo andando, não tolera a ideia de uma mulher torturada não ter delatado. É demais para sua masculinidade frágil.

O encontro começa com Bolsonaro falando de narcotráfico e ligando o crime a ideologias de esquerda. Esse rolê aleatório das ideias é a marca da reunião já histórica.

Logo depois convoca os militares presentes à lembrança do juramento de dar a vida pela pátria. Fala então que não foi a uma viagem que deveria ter sido feita para a Coreia porque ficou com medo de um atirador de elite matá-lo. As coisas saem de sua boca sem nenhuma preocupação com a lógica, com a verdade, com alguma gota de lucidez aparente.

Depois deixa claro que quem ali estiver estará compactuado com o que ele disser. Paulo Guedes está bem perto dele e segue caladinho.

Bolsonaro começa a falar de Dilma e da tortura que ela sofreu em tom de deboche. O rolê do pensamento aleatório o leva ao aborto e nessa hora entra um vídeo de uma pastora que conta histórias mentirosas sobre pessoas interrompendo a gravidez com sete meses de gestação. A ala técnica segue caladinha mesmo diante de tantos absurdos, talvez mentalizando o mantra liberal: “Manter a taxa de juros elevada, manter a taxa de juros elevada, manter a taxa de juros elevada”.

(Aliás, o presidente do BC, o bolsonarista Roberto Campos Neto, só não estava presente à reunião porque tinha tirado férias, como conta aqui a seção “Painel” da Folha).

Não faz muito sentido aquele vídeo da pastora enfiado no começo da reunião, Bolsonaro estava até ali falando sobre a fragilidade das urnas, mas toda hora é hora para meter o bedelho no controle sobre os corpos das mulheres pobres (para as ricas o aborto é liberado faz tempo).

“Só pode ser cristão se for conservador. Não existe cristão de esquerda”, vocifera a tal pastora. Bolsonaro gosta. Guedes segue gatinho.

A partir daí o rolê do pensamento aleatório ziguezagueia pela ameaça comunista, Cuba, Venezuela, direitos humanos, Flamengo, Bangu, areia da praia de Copacabana, ETs.

Heleno, que chegou atrasado, pega o microfone e fala do recurso da espionagem. Bolsonaro, que sabia que estava tudo sendo gravado, pede pra ele parar.

A ala técnica ali ao lado de Bolsonaro segue atenta e passiva.

Para os bons observadores, tudo o que foi escancarado nessa reunião estava previsto há anos. Tem gente falando que assim seria desde 2018. Antes, até.

Tem aqueles, como o professor Vladimir Safatle, que foram capazes de explicar, ponto a ponto, o que aconteceria no Brasil. Tudo devidamente registrado em artigos, entrevistas, palestras.

Mesmo antes de 2016 Safatle já chamava a nossa atenção para a aberração que seria manter no cargo um deputado que disse a sua colega que só não a estuprava porque ela não merecia. O deputado, todos sabem, era Jair Bolsonaro e ele disse isso em 2014. Ninguém ligou.

Safatle durante palestra em 2018: “Há um golpe em marcha [no Brasil]. E por que há um golpe em marcha? Porque esse programa neoliberal, tal como ele foi abraçado, só pode ser implementado no Brasil à bala. Não tem outra saída. Ele nunca vai ganhar uma eleição”.

E tem os comentaristas liberais que naturalizaram Bolsonaro, enalteceram Guedes e que agora, diante da tentativa de golpe filmada, começam sorrateiramente a mudar de lado, sem um pingo da autocrítica que sempre exigiram de Lula e Haddad, como quem tenta fingir que nunca colaborou para que Bolsonaro chegasse ao poder. São os que não querem sujar seus Armani.

De tudo isso, um detalhe precisa ficar bem registrado: não teria sido um golpe militar dessa vez.

Como disse Safatle em uma palestra na UNB em 2018, quem agora estava no poder não eram os mesmos da ditadura, mas aqueles que ficaram no porão da ditadura: os que torturavam, matavam, depois se livravam do corpo e limpavam a cena do crime. Não seria, assim, um golpe militar, mas um golpe miliciano. O primeiro da história.

Escapamos? Eu diria que ainda não.

Seria preciso seguirmos atentos e fortes porque a ameaça ainda está entre nós: nas forças armadas, no poder judiciário, no executivo, no legislativo, nas igrejas e nas redações. Mas temos a chance única de colocar os militares em seu devido lugar pela primeira vez em mais de 100 anos de história. Quem tem as armas não palpita, não fala, não se candidata, não critica, não aparece. Quem tem as armas cala e obedece.

Por Milly Lacombe – colunista do UOL