Os maracatus, as encruzilhadas culturais e o pertencimento religioso – parte II

O Maracatu tem o início da sua história na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Pernambuco, edificada em 1630 pela Irmandade do Rosário dos Homens Pretos. Lá os africanos escravizados e seus descendentes eram persuadidos a abandonar suas crenças religiosas de origem, consideradas práticas de feitiçaria, e erguiam templos e confrarias em sua homenagem. Assim surge a corporação das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos.

O pesquisador Pereira da Costa atribui a instituição do Rei do Congo em Pernambuco, no início no século XVIII, ao compromisso da irmandade com a igreja católica. Essa versão de que o Maracatu nação surge a partir das festas em honra aos Reis do Congo no final do século XVIII é a mais propagada e aceita. Nesse aspecto não há como negar a imposição da fé cristã aos negros escravizados, tendo, a elite dominante do período colonial se utilizado da própria cultura e religiosidade negra para contê-los, dando-lhes a falsa impressão de bondade e liberdade por parte daqueles que lhes mantinham cativos. Um exemplo é permissão do clero, no período carnavalesco, para que eles vivessem em público suas tradições e sua fé, celebrando a coroação do rei e da rainha. A permissão era dada pela igreja católica e a coroação ocorria no pátio de uma igreja com a bênção de um padre.

Os maracatus surgem de forma exógena aos terreiros, mas devido às perseguições ocorridas ao longo do século XX, principalmente no período da interventoria de Agamenon Magalhães em Pernambuco, ele ganha a proteção dos terreiros e passa a ser parte de alguns deles. Com o fenômeno da modernidade, como é o caso da globalização, os maracatus transbordam os terreiros e se tornam um fenômeno cultural que ganha força na década de 1990 com o movimento manguebeat e a propagação dos batuques em todo país. Com o passar dos anos, passa a ser uma expressão da cultura popular, sendo vista como algo folclórico e não mais uma forma de reverência, distanciando-se, aparentemente, de sua dimensão religiosa. No entanto, sua ancestralidade o liga e o ligará sempre aos Orixás, aos terreiros, ao Povo de Santo. Ele sai do terreiro, mas o terreiro não sai dele!

Compreender a dimensão religiosa dos maracatus pressupõe a multiplicidade do olhar para abranger não apenas sua estatura simbólica, mas a sua história, seus valores e seus interesses na manutenção de tudo aquilo que essencialmente o forjou e atualmente o reconstrói e ressignifica cotidianamente como uma grande polissemia. De tal forma, o maracatu não é apenas conhecimento popular transmitido através das gerações, é antes, uma esconsa incitação ao religioso, à consagração da fé de um povo fustigado pela dor e pelo desprezo. Uma manifestação de fé que se transformou em manifestação cultural, por isso, tem seu valor folclórico, tem seu valor como expressão cultural, mas, no cerne de sua concepção ressignificada, há uma espiritualidade gigante que sustenta a resistência negra.

Contudo, a compreensão dos maracatus não se limita a essa dimensão religiosa apenas. Ela perpassa esse horizonte e se mistura ao cotidiano dos batuques que trazem consigo a significância, o significado e as ressignificações de fronteiras borradas em muitas encruzilhadas, permitindo aos indivíduos que acessam esse modo de vida, uma mudança no olhar e na perspectiva sobre o maracatu, se iniciando nos mistérios dessa vivência que tem ultrapassado muros e mídias.

Os maracatus, portanto, têm sua importância histórica e social como mantenedores de uma cultura secular que, mesmo hibridada e ressignificada, traz consigo a força dos tambores e de uma ancestralidade que não ficou relegada a um passado distante, estando presente na vida cotidiana de pessoas de diversas etnias, religiões e classes sociais. Os tambores, redescobertos a partir da força do movimento manguebeat que o propagou para fora dos terreiros, borrou suas próprias fronteiras, se reinventou e se firmou socialmente como cultura brasileira, quebrando o paradigma social e o preconceito étnico daqueles que o julgavam apenas como folclore.

O baque virado traz consigo algo mais que o som, algo mais que o batuque, algo que tem transformado vidas, incluindo e aproximado pessoas de diversos grupos sociais, étnicos e religiosos. Os maracatus representam as encruzilhadas da resistência negra que precisou, em sua trajetória, da proteção dos Orixás, dos terreiros e do dendê para se proteger da tirania e extravasar o desejo de liberdade e o grito de dor preso na garganta. Representa um amálgama que compreende as expressões culturais, as relações comunitárias, o compartilhamento de práticas e memórias, tendo estabelecido, ao longo de sua história, forte vínculo com as religiões afro-brasileiras. É, portanto, uma configuração cultural complexa constituída socialmente de uma história cheia ressignificações e muitas lacunas.

No cenário Paraibano o maracatu Pé de Elefante, o primeiro grupo tido e havido como Nação de baque virado de João Pessoa, tem se ressignificado e reelaborado a prática do Maracatu no estado em suas conexões e políticas, sociais e religiosas. A partir dele, surgiram outros grupos e hoje já podemos bater no peito e dizer: tem maracatu na Paraíba! E tudo isso começa em João pessoa a partir do surgimento do Pé de Elefante no dia 03 de maio de 2008, seguido pelo MaracaGrande em 2009, Tambores do Tempo em 2013; Baque Virado da Borborema em 2014 e Coletivo Maracastelo em 2014. O Pé de Elefante e o Maracastelo se tornaram os dois pilares polinizadores dos maracatus na Paraíba, ambos de João Pessoa.

Não dá pra fazer comparações entre os Maracatus de Pernambuco e os da Paraíba, embora tenham as mesmas raízes. O importante em tudo isso é que o maracatu segue seu cortejo, dentro e fora do terreiro, em uma trajetória marcada por conexões político-sociais e religiosas que permeiam sua constante reinvenção e ressignificação no conjunto dos maracatus na Paraíba, assim como em Pernambuco e outros estados. E todos eles, laicos ou consagrados, são expressões da fé, da arte, da cultura e, sobretudo, da resistência!

Diante de tais fatos relevantes histórica e culturalmente, bem como dos impactos sociais e religiosos que fomentam a prática do maracatu na cidade de João Pessoa, movimentando inclusive a economia e a cultura da cidade, é de fundamental importância reconhecer que o maracatu de baque virado na cidade de João Pessoa se constitui como um importante marco cultural que já se estabeleceu como uma tradição que tem contribuído de diversas formas para as atividades do campo cultural, étnico e religioso da cidade.

Em tempo: dia 26 de outubro, a partir das 20h, estarei lançando o livro “Maracatu à paraibana: no baque virado das encruzilhadas”. O lançamento ocorrerá no Café da Usina –  Usina Cultural da Energisa, em João Pessoa – PB, mas você já pode adquiri-lo através do site da Editora Appris – www.editoraappris.com.br .

Referências:

NEGREIROS, Regina. Maracatu à paraibana: no baque virado das encruzilhadas. Curitiba: Editora Appris, 2023.

Foto capa: Pinterest