A misoginia estrutural que nos atravessa no cotidiano desde antigas civilizações

No mês de agosto, com base na Lei Nº 14.448/2022, muitas instituições desenvolvem ações voltadas para a campanha nacional de proteção à mulher e conscientização para o fim da violência contra a mulher. A referida campanha, denominada de “Agosto Lilás”, tem por objetivo instituir atividades dedicadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres, seja ela física, psicológica, moral, patrimonial, sexual, política etc – além de buscar a equidade de gênero e combater as desigualdades enfrentadas pelas mulheres em seu cotidiano.

O simbolismo do mês traz consigo a concreta realidade que ultrapassa questões teóricas ou sofismas: a misoginia presente estruturalmente na sociedade. Simone de Beauvoir afirma que a história das mulheres foi contada pelos homens e sob sua ótica patriarcal. A mesma coisa ocorre em outras áreas escritas e descritas por homens, brancos e eurocentrados que apagam ou distorcem a história real. E aqui cabe bem a sua célebre reflexão sobre o tornar-se mulher: “NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade” (Beauvoir, 1970, p.9). As mulheres são protagonistas de suas histórias, e nenhum homem pode minimizar a vida de lutas das mulheres achando que as pautas femininas já foram contempladas; eles não têm lugar de fala! Nesse sentido, é preciso o empoderamento, a consciência de classe e de gênero para aumentar o poder de combate aos retrocessos e o avançar nas pautas feministas.

A partir dessa perspectiva, faço uma reflexão à luz da lógica clássica, na qual há três princípios básicos: Identidade, não-contradição e Terceiro excluído. De modo mais explicativo: Identidade: A é A; não-contradição: é impossível A ser A e não -A ao mesmo tempo; terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade. Nesse sentido, trazendo para a sociedade patriarcal, pode-se inferir, a partir do princípio da Identidade, que uma sociedade misógina é misógina. Analisando a misoginia a partir do princípio da não-contradição, infere-se que esta não pode ser misógina e não-misógina ao mesmo tempo. Para fechar os argumentos da lógica clássica, a partir do princípio do terceiro excluído, a sociedade é misógina ou não-misógina, não havendo outra possiblidade.

A partir do aspecto filosófico acima, há uma questão de inquietação que ultrapassa as teorias e se estabelece enquanto uma práxis no cotidiano das mulheres, no qual há um ponto crucial: a autonomia e a ocupação de espaços de poder por parte de mulheres empoderadas e conscientes. Essa ocupação não cabe apenas em si, mas ao espaço ocupado com consciência, sabendo quem somos, onde estamos, quem está do nosso lado e onde queremos chegar. Sem isso, não há como ocupar espaços reais, espaços de construção. Um exemplo disso é a participação de mulheres conservadoras na política que reafirmam o poder patriarcal e atuam de forma contraproducente, contrariando as pautas femininas. O modelo de construção de uma sociedade patriarcal nos violenta todos os dias; basta Ser mulher para ser violentada. “O silenciamento feminino foi tão bem articulado que muitos consideram como mulheres agradáveis aquelas que falam pouco e, preferencialmente, em voz baixa” (Ceribelli, 2022, p. IX) e é no silenciamento que os algozes se erguem, violentam e matam.

O patriarcado é um pacto de manutenção do status quo masculino, “se trata de um conjunto de práticas instituído há milênios para manter as mulheres sob o domínio masculino” (Ceribelli, 2022, p. X), estas práticas são difundidas social e culturalmente inclusive entre mulheres para que elas não se vejam como mulheres fortes e independentes, afinal, como diz Merlin Stone (2022, p. 15):

O que mais podemos esperar em uma sociedade que durante séculos ensinou a crianças, meninas e meninos, que uma deidade MASCULINA criou o universo e tudo o que ele contém, criou o HOMEM à sua imagem e semelhança, e depois, como quem pensa melhor, criou a mulher para obedientemente ajudar esse homem em seus projetos? Como, de muitas maneiras, a imagem de Eva, criada para seu marido e a partir dele, a mulher que supostamente desencadeou a ruina da humanidade, veio a se tornar a imagem de todas as mulheres?

O protagonismo histórico feminino, anterior ao cristianismo e presente nas antigas civilizações, foi pouco a pouco sendo substituído pela figura da mulher pecadora, aquela que condenou a vida na terra ao pecado, a Eva da tradição judaico-cristã. Na idade média as mulheres foram condenadas a morte na fogueira, além de pecadoras como Eva, se tornaram bruxas por desafiar as hierarquias socialmente ao voltarem-se aos saberes ancestrais. E assim, as mulheres foram silenciadas, perseguidas em contínua supressão de suas identidades.

Para compreender melhor essa relação histórica, é importante falar que, nas religiões que precederam o judaísmo, o cristianismo e o maometismo, haviam deusas, deidades sagradas cultuadas com devoção por homens e mulheres, eram matriarcas da criação do mundo. Os achados arqueológicos foram, através do tempo, cuidadosamente apagados e substituídos por figuras masculinas conforme pode-se perceber inclusive no velho testamento:

Deveis destruir completamente todos os lugares em que as nações ocupadas por vós serviram aos deuses delas, nas montanhas, nas colinas, sob qualquer árvore frondosa, deveis pôr abaixo seus altares, esmagar seus pilares, cortar seus bastões sagrados, atear fogo às imagens esculpidas de seus deuses e fazer desaparecer sus nomes do lugar (Deuterenômio 12:2,3).

Essa atitude notadamente de intolerância religiosa, de apagamento histórico de uma época, denota que muitas informações preciosas daquele período são irrecuperáveis, inclusive sobre as relações de subalternidade, a constituição social e religiosa e, obviamente, a existência das narrativas sobre as deusas. As religiões cujas histórias foram apagadas passaram a se chamar, pelos narradores da história, de “religiões pagãs” e os pagãos foram criminalizados e perseguidos pelos imperadores e reis, principalmente nas cidades de Antióquia e Alexandria, cujos templos foram “destruídos, fechados ou convertidos em igrejas cristãs (Stone, 2022, p. 19).

Apesar da tentativa de apagamento generalizado das deidades femininas e do papel da mulher nas sociedades antigas, restaram fragmentos importantes. Não há história no mundo que seja totalmente apagada quando se buscam as informações verdadeiras sobre a história, por mais que se tente deturpar, distorcer ou apagá-las. Exatamente por isso, após escavações históricas e a partir da participação de mulheres nesses processos ou de homens que ajudaram a quebrar as narrativas misóginas de acadêmicos e eruditos de séculos anteriores, foram encontradas e não negligenciadas uma grande quantidade de estatuetas da Deusa encontradas em escavações do Neolítico e primeiros períodos históricos do Oriente Próximo e Médio sugerem que podem ter sido evidentes atributos femininos de praticamente todas as estatuas que incomodaram os defensores da deidade masculina. Muitos “ídolos pagãos” tinham seios (Stone, 2022, p. 19).

Cabe destacar que, em todo processo histórico de produções acadêmicas passadas, sempre houve uma “predominância esmagadora de eruditos do sexo masculino, e o fato de que quase todos os peritos em arqueologia, história e teologia de ambos os sexos cresceram em sociedades que adotam as religiões de orientação masculina (judaísmo ou cristianismo)” (Stone, 2022, p. 20).

Fica evidente que as distorções ocorridas ao longo da história, escrita por homens eurocentrados têm um viés misógino e claramente religioso nesse sentido, afinal, “homens gozam da grande vantagem de ter um deus endossando o código que eles escrevem; e como o homem exerce autoridade soberana sobre as mulheres, é especialmente afortunado que sua autoridade tenha sido investida nele pelo Ser Supremo” (Stone, 2022, p. 13 apud Beauvoir, 1970).

Esses distorções e apagamentos são verdadeiras aberrações na história. Nelas, as deidades femininas passam de deusas, criadoras do universo, matriarcas, guerreiras, curadoras, provedoras da vida para mulheres lascivas, pecadoras, bruxas, loucas ou desequilibradas, impróprias ou agressivas, “enquanto as deidades masculinas que estupravam ou seduziam mulheres e ninfas nas lendas eram descritas como ‘brincalhões’ e até admiravelmente ‘viris’” (Stone, 2022, p. 21).

A materialidade do pensamento e da construção histórica do pensamento mostram que os historiadores, antropólogos, arqueólogos etc, imprimiram em suas narrativas os seus costumes, sua moral, sua cultura patriarcal e interpretaram seus objetos de estudo conforme sua ótica, e assim “passaram sua interpretação equivocada para o resto do mundo” (Stone, 2022, p. 24). Aqui fica evidente a importância da representatividade e das nossas lutas para ocupar espaços de poder que nos permitam ter nossas próprias narrativas e recontar a nossa história. “A imagem de Eva não é nossa imagem de mulher” (Stone, 2022, p. 27).

O fato é que a imagem dos arquétipos femininos foi moldada sob a ótica e o desejo masculino, inclusive o desejo de submeter as mulheres através da inferiorização emocional, física e intelectual. Essa dominação do patriarcado não apenas apagou identidades e personalidades, ela também criou e distorceu histórias e fatos ao longo dos séculos da hegemonia patriarcal no ocidente. Foi nessa perspectiva que Medusa encarnou o mal, mas segundo pesquisas recentes, como a da pesquisadora formada em filologia pela Universidade de Cambridge, Natalie Haynes (2022), “Medusa não foi um monstro, mas sim vítima de estupro”. Para a autora, “nem medusa era tão ruim, nem Pandora tinha uma caixa. E Penélope repreendeu Ulisses por fazê-la esperar tanto” (Haynes, 2022).

Os fatos, na medida em que são descobertos ou revelados, mostram o quanto precisamos revisitar e recontar as histórias narradas sobre o viés masculino, androcêntrico e eurocêntrico. Recontar ajudará na mudança necessária dos paradigmas até aqui estabelecidos. Mas as mudanças de paradigmas só ocorrem a partir da representatividade através de mulheres autônomas, empoderadas e que tenham consciência de classe e de gênero. Mulheres protagonistas de sua própria história e que se tornam mulheres que a história do patriarcado não conseguiu apagar.

Não estou sugerindo o retorno ou ressurgimento da antiga religião feminina. Como Sheila Collins escreve: “Enquanto mulheres, nossa esperança de satisfação repousa no presente e no futuro, e não em um reluzente passado mítico”. Eu mantenho a esperança, porém, de que tomar consciência hoje de uma antiga e amplamente difundida veneração a uma deidade feminina, sábia Criadora do Universo e de toda a vida e civilização, pode ser útil para atravessar as muitas imagens, estereótipos, costumes e leis opressivas, falsamente estabelecidas e patriarcais, que foram desenvolvidas como reações diretas à adoração da Deusa e ditadas pelos líderes das religiões masculinas (Stone, 2022, p. 26).

 

Referências:

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1970.

STONE, Merlin. Quando Deus era mulher. São Paulo: Goya, 2022.

HAYNES, Natalie. Medusa não foi um monstro, mas sim vítima de estupro, diz escritora sobre o mito grego. Entrevista concedida a Irene Hernandez Velasco. BBC News Brasil. 03 set. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-62784089.amp

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