O avanço da pequena política no Congresso Nacional

Analisando os processos eleitorais pós-ditadura (1989 a 2022), incluindo os três governos petistas e seu retorno em 2022, é possível afirmar que estamos submetidos à lógica da pequena política? Em que sentido?  De que se trata?  Segundo Carlos Nelson Coutinho, filósofo político, ensaísta, professor e tradutor, no artigo “A hegemonia da pequena política” afirma que se ela se trata do “predomínio de uma prática que limita o horizonte estratégico da política, convertendo-a em mera técnica para a obtenção de eventuais maiorias parlamentares” que se contrapõe a Grande Política, que o autor, se fundamentando no pensador marxista italiano Antônio Gramsci, afirma que se trata de grandes questões sistêmicas, de embates entre projetos políticos distintos enquanto a pequena política “reduz os conflitos às escaramuças parlamentares e às lutas pelo predomínio no interior de uma estrutura já estabelecida”.

Para Carlos Nelson “Existe hegemonia da pequena política” quando a política deixa de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e se circunscreve as “escaramuças” no parlamento e que tem como uma de suas consequências a desvalorização da política enquanto tal e que, no parlamento, essencialmente, significa a inconteste hegemonia das pautas (regressivas) das classes dominantes, através dos seus representantes.

E como isso se expressa, hoje, no processo de votações das pautas do governo no Congresso Nacional no qual o presidente da República governa com uma frágil minoria parlamentar e consequentemente tem de ceder para aprovar projetos de seu interesse? Ou, como diz a famosa frase: de entregar os anéis se não quiser perder os dedos?

A composição do parlamento no Brasil, majoritariamente conservador e de direita, revela duas lógicas distintas no processo eleitoral: a votação para presidente e para os parlamentos.  Em 2022, Lula venceu a eleição presidencial, mas a oposição venceu no parlamento, especialmente na Câmara dos Deputados (a maior bancada é do PL, com 99 deputados) e também nas assembléias legislativas, mesmo em estados em que o PT ganhou a eleição para governador, como no Rio Grande do Norte. E da mesma forma que o presidente da República faz no Congresso, em suas articulações para compor (ou tentar) compor maioria, o mesmo se dá nos parlamentos estaduais e nesse processo, as inevitáveis concessões, com a ocupação de secretarias, cargos na estrutura burocrática do governo etc.

É um paradoxo o presidente ser eleito por um partido de esquerda e ter no Congresso uma maioria de direita fisiológica? Ou é parte da lógica do sistema eleitoral e partidário brasileiro?

O fato é que isso tem conseqüência. É que, mesmo vencendo a eleição, o presidente (e governadores e prefeitos) fica refém dos respectivos parlamentos se não tem ou constrói maioria consistente e só conseguem implementar suas pautas, fazendo concessões, que significa liberação de verbas, cargos etc., que é uma parte (importante) desse processo. Mas não se resume a isso.  Há o que se pode considerar como um processo de empoderamento do legislativo.

Na atual composição do Congresso Nacional, o governo não tem maioria e tem no máximo ¼ (25%) de apoio consistente, o que é muito pouco, menos do que o chamado superbloco de Artur Lira que tem hoje em torno de 170 deputados e talvez menos do que a Frente Parlamentar Evangélica, estimada em 130 deputados (no senado, são 17 senadores).

O que mudou em relação aos mandatos anteriores? É que houve mudanças no Congresso Nacional. Se antes bastava o presidente conceder aos parlamentares acesso aos privilégios do Poder Executivo em troca de apoio e nesse sentido para governar não se precisava de uma significativa e consistente maioria parlamentar, agora a situação é diferente. O Legislativo conseguiu garantir um acesso praticamente automático ao orçamento público (emendas impositivas), mediado não mais pelo governo, mas pelos presidentes das Casas Legislativas e a presidência da Câmara dos Deputados se transformou num dos cargos mais poderosos da República, controlando bancadas, alterando ritos (e regras) conforme os seus interesses e, aprovando leis que concedem ao parlamento ainda mais prerrogativas, além de poder decidir, sozinho, se aceita, ou não pedidos de impeachment de presidentes da República.

E neste momento o governo comporta-se no Congresso como a minoria que, de fato, é: negocia barganha etc. e embora eleito pela maioria do eleitorado não consegue mobilizar apoios fora do parlamento, dependendo, como da recente aprovação na Câmara dos Deputados do Marco Temporal, muito mais de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) do que da mobilização popular ou pelo menos, dos que são contra o PL, dentro e fora do Congresso Nacional.

O que se constata também são as dificuldades de comunicação do governo, que não tem conseguido levar à opinião pública os inegáveis avanços do seu governo (em seis meses, muito mais do que nos últimos quatro anos) e os problemas com as articulações no Congresso que não tem assegurado as condições de governabilidade, sem se tornar refém do fisiologismo, hoje expressa no Centrão, com o poder central e decisivo do presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira.

Além dos embates do governo com o Centrão tem hoje a grande mídia contra, evidenciando as dificuldades de se governar sem fazer concessões que podem desfigurar totalmente suas intenções, e projetos como expressam os episódios recentes da votação da Medida Provisória (MP) da reestruturação dos Ministérios (aumento de 14 ministérios) para acomodar distintos interesses e tentar construir uma base de apoio consistente no Congresso. E para não correr o risco de ter a maior derrota no Congresso teve de liberar de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares na véspera da votação (a maior quantia liberada em um único dia).

Uma pergunta que parece relevante é: Por que o governo deixou para se articular justamente nos últimos dias? Por que não fez isso antes?

Mas não se trata apenas desse PL. Em mais uma derrota do governo, no dia 30 de maio de 2023 foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) do Marco Temporal. Foram 283 votos a favor e 155 contra. Trata-se de um PL (n.490,) que está para ser votado desde 2007 (ou seja, há 16 anos para ser votado no congresso) e foi votado na Câmara justamente agora. Por quê?

Este PL é mais um avanço da pauta conservadora, ou seja, faz parte de uma série de investidas na Câmara dos Deputados para desidratar a área sócio-ambiental do governo. Qual é essencialmente seu objetivo? Alterar o Estatuto Jurídico das terras indígenas (disciplinado pelo artigo 231 da Constituição de 1988), introduzindo o chamado Marco Temporal de ocupação para os processos de demarcação. Esse Marco Temporal é a data da promulgação da Constituição de 1988 (5 de outubro), ou seja, se aprovado condiciona a demarcação das terras indígenas à presença física dos indígenas nas respectivas áreas em 5 de outubro de 1988, o que para os indígenas e ambientalistas representam uma ameaça ao direito dessas populações ao seu território porque podem significar remoções de seus territórios em pequenos espaços territoriais, além de outras consequências como a possibilidade de empreendimentos comerciais para exploração de recursos naturais nesses territórios, assim como desrespeito aos costumes, línguas e tradições dos povos originários.

O texto segue para votação no Senado, sem data definida. Muito provavelmente será decidida mesmo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sessão marcada para o dia 7 de junho (saliente-se que desde 2021, o julgamento no STF já foi adiado por três vezes).

Para o Ministério dos Povos Indígenas trata-se de um “genocídio legislado” porque afeta diretamente povos indígenas isolados, autorizando o acesso deliberado em territórios onde vivem povos que ainda não tiveram nenhum contato com a sociedade e mesmo com outros povos indígenas.

O que chamou a atenção na votação do PL na Câmara dos Deputados foi que dos 283 votos favoráveis, segundo levantamento feito pelo Poder360, 99 foram de deputados de partidos que têm ministérios no governo (48 votos favoráveis do União Brasil, 25 do PSD, 22 do MDB, 3 dos PSB e 1 do PTD).

E é justamente nesse cenário que a pequena política se faz presente, como parte do cotidiano da política partidária brasileira. A formação de maiorias legislativas se dá em sistema político construído com base no fisiologismo, na troca de favores, cargos etc. E quem exerce o poder Executivo e não se submete, não consegue governar, pelo menos como gostaria ou deveria em função do que defenderam no curso de suas campanhas eleitorais e um dos resultados é esse tipo de votação, cuja reversão só se dá submetendo-se à lógica do fisiologismo. Esse congresso, como disse Roberto Amaral no artigo O presidencialismo emparedado “se afigura como um mostrengo, ainda mais reacionário que o antecedente, ainda mais preso, como craca sedenta, às tetas do erário. Fruto direto do esquema de corrupção que a crônica política identifica como “orçamento secreto”,  o Poder Legislativo de hoje, e nele cumprindo papel primordial a Câmara dos Deputados, é um leviatã insaciável na sua sede por mais poder, impondo-se como verdadeira ditadura sobre o executivo, cuja capacidade de ação é crescentemente limitada, como é limitada sua capacidade de formular políticas e que processo em curso visa a reinstalar, no governo Lula, o governo rejeitado pelo eleitorado. Uma afronta à democracia que deve ser interpretada, julgada e enfrentada como o que de fato é, pois o chamado “terceiro turno” das eleições a que se reportam comentaristas políticos tem nome e sobrenome: golpe de Estado”.

O grande dilema é que há hoje no país um Executivo ocupado por um governo eleito sob o signo da mudança, em total contraste com o desgoverno anterior, mas que não pode adotar uma série de medidas importantes porque necessita do aval do Congresso Nacional. E sem maioria no parlamento e com uma frágil articulação política termina por abdicar da Grande Política e “padecer no calvário” da pequena política.

Em artigo publicado no UOL no dia 29 de maio 2023 o jornalista ex-assessor de Comunicação do governo Lula, Ricardo Kotscho, analisa um aspecto importante do governo Lula, que é o fato de que após cinco meses o governo está sob forte ataque do Congresso e da mídia “sem mostrar sinais claros de reação a esse cenário negativo”.

E este é um aspecto relevante e preocupante em meio ao que ele chama de uma sinfonia sincronizada que não dá trégua ao presidente (e como ele diz, demorou menos do que nos dois governos anteriores, no primeiro, os ataques, sistemáticos, cotidianos se deram fundamentalmente depois do caso do mensalão em 2005, que teve enorme impacto na popularidade do presidente. Agora, com ele diz “não houve sequer um período de lua de mel nos primeiros meses do novo governo”).

Como se constata a “artilharia” contra o governo é generalizada, tanto no noticiário econômico como no político “unindo editorialistas, comentaristas e colunistas da mídia tradicional numa pauta única, em que nada do que vem do governo presta quase no mesmo diapasão dos partidos de oposição no parlamento e da rede bolsonarista de rádio e televisão”.

Ele salienta que nem a aprovação do arcabouço fiscal “importante instrumento para acalmar o mercado e promover a volta do crescimento econômico”, melhorou o humor dos críticos e que o governo também não está primando pela criatividade ao apresentar seus projetos, em sua maioria programas dos governos petistas anteriores que foram apenas reciclados.

O que falta não são boas intenções, novidades e projetos, mas fundamentalmente uma articulação política eficiente no Congresso Nacional e que todos os aspectos positivos do novo governo em relação ao anterior (no meio ambiente, na cultura, educação, saúde, direitos humanos, retorno de programas como Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida etc.) cheguem à população. Como disse a ministra do Meio Ambiente Marina Silva, parte do Congresso quer impor ao governo Lula o modelo de gestão de Bolsonaro. E nisso reside o grande perigo e desafio para o governo Lula. Enfrentar (e vencer) os conservadores, à direita e a extrema direita dentro e fora do Congresso Nacional. E dificilmente terá êxito se submeter à lógica do fisiologismo do Congresso Nacional e da pequena política.

Foto: Jorge William / Agência O Globo